Bom Dia.

Todos os dias ela tinha as mesmas preocupações. Acordava, abria os olhos, verificava seus braços, pernas, cabeça e, logo, o corpo todo. Estava tudo no lugar, apesar de não sentir nenhum desses membros direito. Suspeitava que ainda estava viva. Pelo menos seu corpo ainda estava vivo. Respirava, enxergava (apesar de mal), sentia fome, e , logo percebia que não era seu corpo que sentia fome, mas sim sua alma. Aquela que, naquele momento ela sentia vazia. Pedindo alguma coisa que a alimentasse. "de todo não é ruim, apesar de vazia, ainda a sinto" - pensava. Foi até a geladeira, abriu-a e verificou que nada ali poderia alimentar sua alma. Abriu o armário da dispensa e, novamente, nada que pudesse a alimentar. Lembrou que essa fome já durava mais de ano e que, até agora, nada tinha acabado com ela. Desistiu mais uma vez. Foi até o banheiro para começar seu ritual diário que tanto detestava. Detestava quando o novo começava a virar rotina. Quando parou em frente ao espelho para se olhar, lembrou-se também que fazia tempo que não conseguia se enxergar. "essa maldita cegueira que não me deixa me enxergar...". Da mesma forma como não conseguia matar a fome de sua alma, não conseguia acabar com sua cegueira. Também já havia tentado de tudo. Lentes, óculos, binóculos, trinóculos. O que fosse. Ela não se enxergava. Se arrumou as cegas, como estava acostumada, vestiu seu uniforme de trabalho, pegou sua bolsa e saiu maquinalmente, como todos os outros dias. Pondo os pés na rua, pensou que, finalmente iria conseguir recuperar sua sensibilidade, achou ter sentido o vento, sua pele esquentando sob Sol, pensou ter sentido a respiração de desconhecidos passando ao seu lado, ouvido uma música tocar na janela da casa vizinha. Pensou estar achando, enfim, a sua realidade. Quando se lembrou que isso era seu velho hábito voltando a se manifestar. Vivia imaginando, criando seu próprio mundo e, desde do dia em que resolveu cortar esse vício de sonhar e tentar viver na realidade, se encontrava na pior de suas angústias. Perdeu as esperanças mais uma vez e continuou a caminhar pro trabalho, sempre em passos largos. "será que essa era a única solução? será que na verdade, a verdade não existe? será que o mundo é como nós imaginamos que ele seja? será que o que eu enxergo não é o mesmo que ele enxerga? será que eu posso inventar a cada minuto, uma mentira que eu julgo ser verdade e que enquanto ninguém contestá-la a ponto de me convencer do contrário, vai continuar sendo uma mentira verdadeira pra mim?" - pensava aflita, durante o seu caminho. "não aguento mais procurar minha realidade. a realidade é triste, mas pensar que vivo num mundo inventado também é!" - pensava e caminhava - "procuro demais, tento enxergar além. será que a solução é parar de olhar à frente e olhar pro agora? eu não quero enxergar agora, eu quero enxergar à frente! serei fadada a essa visão limitada pro resto da vida?" - pensava e caminhava - "ou a realidade é essa e na verdade estou tentado fugir dela? maldita cegueira, maldita fome!!" - parou.
Abriu os olhos, olhou a hora, não havia passado muito tempo desde a última vez que havia olhado o relógio. Tinha sido mais uma noite de insônia. Estava na hora de levanta e retomar sua rotina diária. A começar, certamente, por verificar se seu corpo estava todo no lugar, apesar de não senti-lo direito...